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autira, ilustradora e pensadeira roberta asse

É da minha natureza pesquisar e experimentar interrelações e repertórios dos mais diversos para pensar o livro e a literatura. E pensar a vida também. Por isso meu fazer e minhas pesquisas envolvem a escuta de crianças e adultos, viagens a campo, vivências cotidianas ressignificadas e também os estudos acadêmicos. Tudo misturado e em dinâmica criação e recriação de expansões.

 

Minha trajetória como aluna especial na FFLCH-USP, depois mestranda, com estágio na Universidade de Aveiro, em Portugal, tem sido um mapa de descobertas e confirmações que me permitem organizar ideias e nomear sensações.

 

Coloco aqui um texto incompleto, sem deixar de ser arrebato, recortado do último capítulo da minha dissertação, onde aparece muito do meu jeito de ver e pensar. Bom demais poder compartilhar!

A LITERATURA INFANTIL CONTEMPORÂNEA ENTRE VOZES DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E CULTURAS DAS INFÂNCIAS

 

A criança não sabe menos, ela sabe outra coisa.

Clarice Cohn

 

 

“Estamos diante da revolução que falta, que é a revolução da criança!” (HORTÉLIO, 2019). Com estas palavras, a educadora Lydia Hortélio[1] amplifica e representa vozes de reconhecimento e ocupação, por pensamentos e movimentos diversos vindos de várias áreas do conhecimento, para as infâncias contemporâneas. “É a revolução do brincar, do restabelecimento do ser humano com toda a sua grandeza.”, complementa a musicista.

Essa percepção pode ser comparada com a da professora, pesquisadora e crítica
literária Nelly Novaes Coelho:

 

Parece evidente que o caminho da invenção/construção da nova ordem que há de vir passará pela educação, pela formação cultural/ética/existencial das novas gerações. (...) Há uma “revolução silenciosa” em marcha. É só atentarmos para a efervescência de pesquisas em todas as áreas de conhecimento ou entrarmos no mundo da literatura de ontem e de hoje, e veremos que há uma nova visão de mundo em gestação. (COELHO, 2012, p. 102)

 

De fato, a perspectiva de uma significativa mudança em curso, com dimensões capazes de gerar “uma nova ordem e visão de mundo”, encontra ainda ressonância nos estudos sociais sobre as infâncias, principalmente nas áreas da sociologia e da antropologia.

Enquanto observamos tais mudanças de caráter revolucionário nas visões sobre as infâncias, a maioria dos críticos, leitores atentos e pesquisadores da literatura infantil são consensuais sobre a presença de livros inovadores e propositores de experiências literárias multiplicadas. No acervo de publicações contemporâneas para as infâncias, as experiências devem-se aos recursos que renovam e expandem linguagens em todos os elementos compostos do códex e sua natureza de suporte para as histórias. Essa multiplicidade e expansão pressupõem um leitor capaz de criar e recriar leituras com base nesses livros.

Das relações possíveis entre estes movimentos que envolvem, de um lado, as vozes e visões das infâncias e, de outro, a literatura infantil, trago a hipótese de que há implicações e influências importantes entre eles e nos efeitos inovadores que ambos têm demonstrado.

Com base nessa detecção, e considerando como pressuposto, historicamente comprovado, a relação retroalimentada entre as ideias empreendidas a respeito das infâncias e as produções literárias culturais destinadas a elas, minha pesquisa de mestrado procura, diante do cenário atual em efervescência, revisitar e compreender as atualizações da literatura contemporânea como cultura manifesta e desencadeante de novas culturas.

Esse conjunto de obras selecionadas, assim como o contexto ao qual pertencem, está em sintonia com o conceito de espaço de invenção, indicado por
Daniel Goldin:

 

A literatura para crianças que se assume verdadeiramente como literatura, ou seja, como um território liberado da linguagem, permite não só recordar o passado de cada homem no sentido etimológico do termo re-cordis, “passar pelo coração”: permite abrir um espaço em que a criança nos invente, ou, pelo menos, nos possibilite uma maior liberdade para construir um mundo que desterre a violência, que estabeleça um equilíbrio maior entre as potências de poder.

(GOLDIN, 2006, p. 85)

 

Considerando que um dos pilares da construção dessas literaturas em seus diversos formatos, assim como do pensamento das ciências sociais, tem sido a transposição da voz, representação e participação infantil, a pesquisa não poderia deixar de acolher e dar espaço generoso e cuidado para a manifestação e observação das vozes das crianças. Por meio da relação entre resultados de pesquisa com crianças leitoras e todos os demais conteúdos inter-relacionados durante o trabalho, foi possível confirmar hipóteses e sugestões sobre comportamentos e interações profundas de diversas crianças em experiência com alguns livros e com suas histórias.

Como inspiradora ou gênese, a escuta do outro e de si sempre foi combustível para a escrita literária. Nenhuma novidade, se lembrarmos principalmente do elenco de cronistas que nos premiam com textos que já fazem parte do patrimônio imaterial brasileiro, incorporando aos personagens jeitos de falar e se envolver em situações que nos leva, como leitores, a nos reconhecer e participar como parte do cenário proposto nos textos.

Observar, aprender e ler com as crianças é uma atitude política e de conexão entre grupos sociais de importância equivalente nos contextos da sociedade como um todo, em toda sua diversidade. Que livros e experiências literárias podem nascer dessa proposta? Observamos aqui respostas encantadoras em formatos surpreendentes, ligadas às habilidades sensíveis, lúdicas e conscientes de alguns adultos que, em sintonia com culturas infantis, são capazes de criar e expandir a partir do existente. Estes livros luzem a mágica de ser janela aberta para cruzar vento entre realidades e imaginações. Vento forte que sustenta, e nele é possível voar, ir e voltar. Livros que participam da formação de leitores de mundos, além de livros.

Há um pensamento tradicional que guia alguns trabalhos importantes nas publicações editoriais, que tem sido colocado como contraponto para as ideias relacionadas aqui. Trata-se do chamado endereçamento, em que se acredita que a literatura não se realiza, como arte que é, ao preocupar-se com limites pressupostos por particularidades do destinatário, leitor, usuário, vidente, impactado, como quisermos. Parte-se do pressuposto de que a expressão autêntica do autor só acontece se for livre, e a visão sobre as infâncias que recepcionam ou acolhem sua obra restringe-se à experiência memorial da própria infância do autor, aquela vivida e revisitada para a concepção de sua obra, se ele assim o quiser. Sob esse pensamento, o livro é uma carta com remetente, sem destinatário.

Algumas razões a partir das quais esse pensamento se solidifica são compreensíveis, e bons livros já foram criados a partir dessa premissa. Porém, as reflexões expostas nessa pesquisa podem ajudar a compreensão (e apropriação da atitude) de que conhecer e aprender sobre a universalidade e as particularidades do destinatário, ao invés de desidentificá-lo, não limita a liberdade criativa. Ainda permanece na esfera da criação livre a transformação de repertórios, experiências e aprendizados em suas relações com o outro, com a comunidade. Ao contrário, ao conectar esses repertórios desdobráveis e tentaculares, este conhecimento pode provocar um efeito de ampliação de possibilidades na busca pelas linguagens e recursos inovadores e comprometidos com o universo de cada novo projeto de livro – e aqui nos referimos ao projeto do livro como um todo, desde a concepção até a arte-final pronta para ser lida. Ao longo desta pesquisa, foi possível perceber que é sobre esse campo tão livre a ponto de caber a escolha pela relação com outros – como condição para que seja vivo e possa transformar-se até o sem-limite da recepção – que a inovação e conquistas atribuídas aos livros da nova geração de autores portugueses, e de artefatos como Inês, acontecem.

 Cabe aqui, portanto, um entendimento propositivo: ao invés de endereçar a carta a um destinatário desconhecido, podemos dizer que alguns livros contemporâneos endereçam uma carta para TODAS as crianças e TODOS os leitores. Se e como esta carta será recebida, é efeito da natureza de qualquer exposição pública, e da recepção da arte.

Vale lembrar, como já colocado aqui, o entendimento desta pesquisa de que a recepção diz respeito a um movimento de interação com o contexto, onde a arte é sujeito e objeto de transformações de caráter universal e particular. Se estamos falando de literatura, Daniel Goldin contribui:

 

A palavra escrita é o instrumento mais poderoso para atribuir sentido, mas, inevitavelmente, está aberta a novos significados. Não apenas por sua essência polissêmica, mas porque o sentido só é extraído do contingente e para o contingente. (GOLDIN, 2012, p. 167)

 

 Considerando o cabedal das pesquisas sobre a literatura e seu caráter mutante e regenerativo, profundamente imbricada dos e pelos deslocamentos humanos, já evoluímos historicamente e criamos o suficiente para podermos abrir mão da necessidade cansativa de classificar e enquadrar literaturas. Como diz a escritora Maria Valéria Rezende, literatura só tem duas: a ruim e a boa.

Por enquanto, podemos entender que esta “converseira” pode deixar seu eco nesse ponto, com desafios suficientemente fortes e com potencial transformador, que envolvem poder e empatia. Que se façam novos olhares e aprofundamentos! Compartilhemos o chamado com Roger Bastide no prefácio de As trocinhas do Bom Retiro: “Temos necessidade de que se multipliquem as pesquisas deste gênero. Que não se tema esclarecer uma ciência pela outra.”, com a crença de que a literatura é capaz de manipular fórmulas mágicas de crescimento para que mais crianças possam se tornar adultos que machuquem menos uns aos outros.

Tomaremos para encerramento a chamada de esperança do trecho do prefácio do livro Os dias e os livros, de Daniel Goldin, escrito por Ana Maria Machado:

 

 “A literatura infantil contemporânea tem sido observada considerando a recriação efetuada pelo leitor, já que a linguagem não é unívoca nem transparente, e com isso dá direitos e poderes a quem lê. Esse diálogo potencial entre adultos e crianças por meio da literatura infantil representa uma esperança. Como nenhuma outra criação cultural pode propiciar uma redefinição da relação entre eles, a partir de um território liberado da linguagem, com uma redistribuição de poderes não mais baseada no autoritarismo adulto.” Cientes de que podemos celebrar juntos o bom do tempo em que chegamos, retomando Goldin: “a evolução da literatura(...), busca ou propicia, de diversas formas, o diálogo, a participação ativa das crianças no mundo.” (GOLDIN, 2012, p. 59).

 

Contribuir para os estudos sobre literatura infantil e suas possíveis relações com outras artes e saberes é perceber que a literatura é um movimento que abrange um universo além das suas páginas. Literatura infantil, literatura, é arte que se origina e expressa no pensamento social, histórico, político e cultural. Aqui, a roda se abre novamente, para o leitor deste texto sobre literaturas, infâncias e exercícios imaginativos.

 

 

[1] Declaração da educadora e musicista Lydia Hortélio em teaser da Ocupação Lydia Hortélio - Itaú Cultural, evento ocorrido em São Paulo de julho a agosto de 2019: https://www.youtube.com/watch?v=rXBjuD3Qtbc, visitado em 03 de setembro de 2019.

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